Pessoas autistas vivem num estado permanente de insegurança e ansiedade porque não entendem como o mundo funciona, e tudo sempre parece novo para elas. Por causa disso – e de algumas outras razões −, se sentem mais seguras quando tudo é sempre igual, previsível e funciona conforme a rotina que já conhecem.
A importância da previsibilidade no autismo
A previsibilidade e a rotina, além de trazerem segurança, ajudam a pessoa a ter controle sobre a situação, pois evita imprevistos. Para as pessoas com autismo, tudo o que é novo, ou diferente, ou inesperado é percebido como uma ameaça em potencial. Podem ficar extremamente angustiadas diante das menores mudanças, porque não entendem a abrangência dessas mudanças, não sabem se mais alguma coisa vai mudar e quais consequências isso vai ter.
Imprevisibilidade no ambiente
Mudanças podem ocorrer, por exemplo, no ambiente. A presença de pessoas diferentes é uma mudança; ou então, a presença de pessoas conhecidas num ambiente diferente daquele onde elas costumam estar. Por exemplo, para uma criança autista pode ser muito perturbador encontrar a professora no supermercado, ou ver o pai dentro da sua sala de aula.
A mudança também pode acontecer sob forma de objetos diferentes no ambiente costumeiro: uma cadeira diferente no consultório do neurologista, uma planta nova ao lado da porta de entrada da casa. Às vezes são os mesmos objetos que foram trocados de lugar: a criança chega na sala de aula um dia e o armário que sempre estava no canto esquerdo do fundo da sala agora está ao lado da mesa da professora. Podem ser sons ou cheiros inesperados. Digamos que um dia a funcionária da limpeza esteja usando um produto diferente do habitual. A criança autista vai ao banheiro e volta para a sala de aula muito ansiosa e angustiada. Ela não entende o que aconteceu: o lugar e o cheiro não combinam mais. Ela não tem certeza de que aquele banheiro ainda é o mesmo banheiro que ela conhece! E a professora vai ter muito trabalho para descobrir o que deixou a criança tão nervosa de um momento para o outro.
Veja dois exemplos que ocorreram na Pandorga Criança e como mudanças aparentemente insignificantes podem ser difíceis de manejar para a pessoa autista. Há vários anos, a Pandorga Criança ainda funcionava nas dependências da casa da coordenadora da associação. Certa tarde, ela sentou-se junto com as crianças à mesa do lanche. Na sua frente estava a Julinha. De repente, a menina surtou: ela gritava, esperneava e chorava num total desespero. Tentaram de tudo para acalmá-la, mas ela estava totalmente descontrolada. De repente a coordenadora teve um lampejo. Ela se levantou, correu até o quarto dela, tirou os brincos que estava usando e colocou os mesmos que havia usado no dia anterior. Voltou para a lanche, a Julinha olhou pra ela e o desespero passou, como se nada tivesse acontecido.
Uma situação parecida aconteceu não faz muito tempo. Colocaram na mesa do lanche um rolo de papel toalha decorado com florzinhas. Uma criança surtou. Alguém tinha doado um pacote de papel toalha com florzinhas. Porém, na Pandorga Criança, o papel toalha sempre tinha sido branco, só branco, sem florzinhas.
Imprevisibilidade no transporte
Também pode haver mudanças complicadas no transporte escolar. A van pode estar estragada e precisa ficar alguns dias na oficina; por isso, vão buscar a criança numa van diferente. É possível que a criança se recuse a entrar nela. Ou então, certo dia vem outro motorista porque o de sempre está doente ou saiu do emprego. Também pode acontecer que, de um dia para o outro, a van comece a fazer um trajeto diferente porque há um estudante novo a ser buscado. Tudo isso parece simples e corriqueiro, mas pode significar dificuldades e, quem sabe, crises para a pessoa autista.
Gilberto, por exemplo, sempre vinha para a Pandorga com o ônibus escolar. Um dia o ônibus estragou e ficou estragado por várias semanas. Durante esse tempo, a administração municipal, responsável pelo transporte escolar, simplesmente deixou de buscar o Gilberto. Ele ficava triste e angustiado porque queria ir para a Pandorga. Pegava a mochila e ficava esperando no portão. O pai do Gilberto tentou levá-lo para a Pandorga de carro, mas Gilberto recusou terminantemente: “Não, não quero; esse não é de ir para a Pandorga.”
Imprevisibilidade nos horários
Horários e atividades na programação diária frequentemente mudam. Uma aula de matemática que era antes do recreio, de repente é trocada para depois. Ao meio-dia a professora de yoga comunica que a aula de hoje, em vez de ser às 17h como sempre, vai ser às 18h. Ou ainda, a consulta no dentista, que seria hoje às 15h, foi adiada para amanhã às 14h.
Dominique e sua rotina
Dominique Dumortier, pessoa autista que já foi citada em outros artigos, também tem histórias sobre previsibilidade. Veja o que ela fala sobre listas:
Eu uso muitas listas. Estou sempre fazendo listas e horários. Por exemplo, não consigo ir fazer compras sem uma lista. Recentemente fiz uma lista e fui ao supermercado comprar ingredientes para uma salada de atum, destinada a um evento do grupo de escoteiros.
Quando fui para o caixa com as compras, passei pela maionese. Sabia que não tínhamos mais maionese e que eu precisava dela para a salada. Mas não pude comprar a maionese, porque não estava na minha lista.
Sabia que não tinha muito tempo, e que realmente precisava de maionese, mas tive de deixá-la para trás. Deixei as compras todas em casa e voltei ao supermercado com uma nova lista para comprar maionese.
Até para comer M&Ms e laranjas, ela também tem uma rotina:
Gosto de M&Ms e preciso comê-los numa certa sequência: começo com uma certa cor, depois vem outra bem determinada e assim por diante.
Quando como uma laranja, preciso comer dos gomos pequenos até os maiores. Posso passar quinze minutos colocando-os em ordem, mas se não for assim, não consigo comê-los.
A imprevisibilidade pode ter consequências graves
Pelos exemplos que você acabou de ler, você consegue entender como a vida diária pode se tornar complicada quando detalhes aparentemente triviais adquirem tanta importância. Além disso, as consequências, às vezes, podem ser muito sérias. Veja os dois exemplos a seguir.
O Breno sempre vem para a Pandorga de carro, trazido pela mãe. Certo dia, o carro foi abalroado, girou na pista, virou de lado e pegou fogo. Breno, que é um rapaz grande e pesado, se recusou a sair, porque ainda não tinham chegado na Pandorga. A mãe dele tentava de todo jeito tirá-lo do carro sem sucesso. Felizmente, apareceram dois homens para ajudar, cortaram o cinto de segurança e conseguiram tirar o Breno do carro à força.
A outra história é contada por nossa professora Rita Jordan[1] em um dos seus cursos, quando explica a necessidade de preparar as pessoas com autismo a tolerar e aceitar mudanças. É a história de um homem autista que trabalhava havia 40 anos como funcionário público numa grande repartição pública inglesa, onde ainda tinham alguns hábitos antiquados como a “hora do chá”.
A senhora do chá passava todos as tardes para servir chá aos funcionários. Ela passava sempre na mesma hora com o carrinho, trazendo o chá, uma jarra com água quente, uma leiteira (na Inglaterra as pessoas tomam chá com leite), xícaras e pires. Para este funcionário, era uma espécie de ritual que se repetia todas as tardes.
E durante 40 anos sempre tinha sido a mesma senhora, o mesmo carrinho, a mesma jarra, a mesma leiteira e a mesma louça. No entanto, certo dia a leiteira foi substituída por outra. A senhora era a mesma, assim como o carrinho, a jarra de água quente e a louça; mas havia uma leiteira estranha.
Quando viu aquele objeto desconhecido no carrinho, o homem surtou e, no seu descontrole, acabou derramando a água fervente sobre a pobre senhora do chá. O desfecho foi muito triste para ele, que perdeu o emprego, e terrível para a senhora, que saiu com queimaduras sérias do incidente.
A professora Rita explica como esse episódio poderia ter sido evitado:
Tudo isso poderia ter sido antecipado se alguém tivesse se dado conta das implicações daquela mudança e tivesse preparado o homem para ela. Algumas dessas idiossincrasias precisam ser levadas muito a sério. A dificuldade com mudanças pode ser crucial. Mesmo que uma mudança pareça banal para nós, para pessoas com autismo pode ser uma questão de vida ou morte. Elas não sabem se aquilo é importante ou não. Uma leiteira estranha talvez faça uma grande diferença. Quem sabe se o chá ainda terá o mesmo sabor? Quem sabe se não foi envenenado? Quem sabe? Quando as coisas ficam diferentes, elas se tornam incertas, e pessoas com autismo não conseguem lidar com a incerteza.
A partir desses diversos relatos, fica claro que, àqueles que convivem ou trabalham com pessoas autistas, cabem duas tarefas fundamentais:
é necessário preparar com antecedência toda e qualquer mudança de rotina por mais insignificante que nos pareça; e
precisamos preparar as pessoas com autismo para tolerar e aceitar mudanças; essa é uma questão educacional.
No autismo, evitar problemas passa, muitas vezes, pela educação: é necessário ensinar o que normalmente não se ensina. E evitar é muito melhor do que remediar.
Aguardamos você no próximo artigo!
[1] Curso online Promover o bem-estar ao longo da vida, com a professora Rita Jordan, oferecido pela Pandorga Formação em Autismo.
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