Neste artigo vamos descrever dois lados da sociabilidade no autismo que parecem ser contraditórios. A socialização é difícil sempre; porém, enquanto algumas pessoas autistas não querem socializar, outras querem e tentam, apesar das dificuldades.
Dois lados da sociabilidade no autismo
A sociabilidade no autismo, como todos os outros aspectos deste transtorno, é um assunto complexo. A grande variabilidade que caracteriza o autismo, também está presente na maneira como cada indivíduo autista procura lidar com a socialização. A seguir vamos conhecer algumas experiências de pessoas autistas em relação à sua habilidade e vontade de socializar..
Pessoas autistas que não querem socializar
Existem pessoas autistas que não conseguem socializar. Mas também existem aquelas que francamente não querem: elas demonstram medo ou aversão a qualquer ideia de relação ou convivência social.
Gustavo
Com frequência, quando uma pessoa com autismo grave ingressa em um dos centros de convivência da Associação Pandorga, ela se fecha em si.
Quando tinha 10 anos de idade e começou a frequentar a Pandorga Criança, Gustavo estava muito desconfiado. Ficou duas semanas sentado imóvel na beirada da mesma cadeira, tenso, espantado, na defensiva. Só olhava em volta, atento, e recusava qualquer aproximação. Depois daquelas duas semanas, começou a relaxar gradualmente. Saiu da cadeira e começou a andar pelas dependências da Pandorga, absorvendo o ambiente e as pessoas e, um dia, sentou-se à mesa do lanche. Hoje é um dos mais descontraídos e alegres atendidos da Pandorga. No entanto, quando chegou, era avesso a qualquer contato social.
Isso também se observa frequentemente nas escolas: muitos estudantes autistas não socializam, ou porque não conseguem, ou porque não querem. Ficam longe das outras crianças e não se misturam. Muitos nem conseguem permanecer em sala de aula: caminham o tempo todo pelo pátio, em geral seguidos de perto por uma acompanhante ou auxiliar de ensino.
Ros Blackburn
Ros Blackburn, uma autista britânica muito conhecida como brilhante conferencista, chocou a plateia no congresso da rede Autism Europe, em 2013, com uma afirmação radical sobre o autismo e a dificuldade de socializar:
As pessoas tendem a nos obrigar a interagir. Posso dizer que obrigar um autista a interagir é como jogar uma pessoa com aracnofobia em uma banheira cheia de aranhas. Isso só para as pessoas terem ideia do quanto isso é difícil para nós.
Dulce
Dulce é professora e também relata experiências muito difíceis com a socialização. Aos 60 anos de idade, ela participou de uma jornada de autismo da Pandorga Formação e a partir dessa experiência se deu conta de que era autista. Algum tempo depois, em um e-mail para a coordenadora da Associação Pandorga, Dulce escreveu o seguinte:
As primeiras lembranças que tenho são de ser uma menina silenciosa e com dificuldades de me relacionar e de conversar com as pessoas. (...)
Enquanto meus irmãos brincavam muito, eu repetia minhas brincadeiras e de preferência só ou com eles. Se aumentasse o grupo eu já ficaria desconfortável.
Meus irmãos me chamavam de fresca e chata. Na realidade, me achavam uma estraga prazeres. Eu fui crescendo e isso me acompanhou.
Os relacionamentos eram muito difíceis, e a reclamação era de que eu era chata e desistia dos passeios, jantares e reuniões.
Dulce, professora, autista, 60 anos
A mesma barreira para socializar aparece no comportamento de uma enfermeira autista que trabalha em um posto de saúde. Segundo o relato da mãe desta moça, é assim que ela define sua relação com as colegas de trabalho: “Quando chego no posto de saúde para mais um dia de trabalho, não cumprimento ninguém. Não vou lá para socializar; vou lá para trabalhar.”
Clare Sainsbury
Outra autista britânica, Clare Sainsbury, no seu livro intitulado Martian in the Playground[1], publicado em 2000, relata experiências vividas por ela e por outros autistas do mundo inteiro nos tempos de escola.
Neste livro ela descreve a seguinte cena:
Aqui está uma das minhas mais vivas memórias da escola: Estou parada num canto do pátio como sempre, o mais longe possível de pessoas que possam me empurrar ou gritar, olhando para o céu e absorta nos meus pensamentos. Tenho oito ou nove anos de idade e comecei a me dar conta de que sou diferente de um jeito que não tem nome, mas perpassa tudo.
Não entendo as crianças ao meu redor. Elas me metem medo e me confundem. Elas não gostam de falar de coisas interessantes. Eu costumava pensar que elas eram bobas, mas agora estou começando a entender que eu é que sou completamente errada. Eu me esforço muito por fazer o que me mandam, mas justamente quando eu acho que estou sendo extremamente colaboradora e boa, os professores me xingam e eu não sei por quê. É como se todo mundo estivesse jogando algum jogo complicado e eu fosse a única pessoa que não ficou sabendo as regras. Mas ninguém vai admitir que é um jogo ou que existem regras, e muito menos vão querer me ensiná-las. Quem sabe não estão querendo fazer uma pegadinha comigo? E olha que eu entendo de pegadinhas.
E ela termina este relato com palavras muito perturbadoras:
Eu ficaria muito feliz se me deixassem a sós para pensar meus pensamentos, mas não me deixam. Fico pensando que eu talvez seja uma alienígena que foi colocada neste planeta por engano. Eu até desejo que seja assim, porque isso significaria que lá fora no universo talvez existam outras pessoas como eu. Meu sonho é de que um dia uma nave espacial desça do céu bem na minha frente e as pessoas que saírem da nave vão se aproximar e me dizer: “Foi tudo um erro terrível. Você nunca deveria ter vindo para cá. Nós somos sua gente e viemos para levar você para casa.”
Para a Clare criança, parece não existir mais nenhuma possibilidade de sintonia entre ela, pessoa autista, e o universo das pessoas típicas.
Pessoas autistas que tentam socializar apesar das frustrações
Em outros relatos observamos o que pode parecer uma contradição: muitas pessoas com autismo, apesar das barreiras e das tentativas frustradas, anseiam por interação social e não se cansam de buscá-la.
Alberto
Alberto, por exemplo, é um rapaz autista com certas limitações, muito espontâneo e com boa comunicação verbal. Quando aconteceu o episódio que vamos contar, ele tinha 17 anos.
Num domingo, junto com outras famílias ligadas ao movimento autista, a família de Alberto foi almoçar num restaurante. No final do almoço, Alberto se levantou antes dos demais e se postou na entrada do estabelecimento. Um pouco mais adiante estava uma garota, alguns anos mais velha, aparentemente esperando alguém. Alberto viu a moça e foi na direção dela, gesticulando entusiasmado e falando alto: “Oi, tudo bem? Que dia legal hoje, né? Esse sol está muito bacana...” e assim por diante.
Sem se dar conta, Alberto tinha invadido o espaço da moça, com a voz alguns decibéis acima do razoável. A moça olhou para ele espantada e saiu de perto rapidinho. Alberto ficou ali plantado por alguns instantes, digerindo mais uma tentativa frustrada de socialização, mas não se entregou. Quando os pais e amigos começaram a sair do restaurante, ele mesmo pediu para revisar com eles suas “lições sobre sociabilidade”.
O rapaz da aldeia inclusiva
Outro exemplo de anseio por contato social aconteceu por ocasião da visita de Heide e Nelson, coordenadores da Pandorga, a uma “aldeia inclusiva” modelar, onde são acolhidos e vivem, num espaço amplo, dezenas de pessoas com necessidades especiais. Heide e Nelson estavam na calçada aguardando o diretor da instituição quando, do outro lado da rua apareceu um jovem, com muita pressa, que foi até eles e, gesticulando, disse: “Puxa, está quente hoje, né? Nossa, um sol de rachar!”. Em seguida continuou apressado em outra direção.
Momentos depois, enquanto o casal continuava esperando o diretor, veio mais uma vez, de outra direção, o mesmo jovem, com a mesma pressa, disse as mesmas frases: “Puxa, está quente hoje, né? Nossa, um sol de rachar!”. E, como antes, continuou apressado em outra direção.
A cena se repetiu mais duas ou três vezes no decorrer daquela manhã, em diferentes pontos da aldeia. Esse rapaz fez diversas tentativas de se relacionar, mas suas tentativas nunca passaram de um contato momentâneo. Aparentemente, sabendo que não conseguiria desenvolver uma conversa, ele próprio desistia e se retirava. Contudo, logo adiante, voltava a tentar outra vez.
Alberto e o rapaz da aldeia inclusiva são exemplos de pessoas autistas que não desistem de buscar o contato social, apesar das frustrações.
Dominique Dumortier
Outra pessoa com autismo que se encaixa neste grupo é Dominique Dumortier, da Bélgica, que escreveu um livro muito esclarecedor sobre o autismo dela.
Dominique resume exemplarmente a experiência dos autistas que, apesar de toda a frustração, anseiam e buscam ativamente a tão desejada convivência social. Ela diz:
“Não consigo fazer amigos novos; tenho demasiados problemas em estabelecer contato. Estar com amigos num grupo também é impossível, porque as minhas capacidades sociais são muito pobres.
Muitas vezes não me dou bem com os meus melhores amigos se estivermos num grupo. Sinto-me como se afundasse nas interações sociais do grupo. Elas apresentam muito mais informação do que a que eu consigo processar no momento.
Eu ficava contente quando podia estar com amigos. Mas essas também eram as noites em que eu me sentia mais infeliz. Eu via as outras pessoas conversando - e eu não conseguia.
Via as pessoas interagindo na pista de dança, sorrindo e dançando - e eu não conseguia. Via como alguém tentava estabelecer contato comigo e acabava desistindo, porque não estava conseguindo, embora não houvesse nada que eu quisesse mais.
Via como eu era parte de um grupo de pessoas, mas estava excluída. Era muitas vezes frustrante, mas eu continuava a ficar contente quando podia ir aos passeios.”
Estabelecer contato: não havia nada que Dominique quisesse mais! Era frustrante, mas ela continuava a ficar contente quando podia sair com os amigos...
Vamos lembrar o que disse Naoki Higashida:
“Não posso acreditar que qualquer ser humano deseje mesmo ser deixado só. De forma alguma.
A verdade é que amamos ter companhia.
Toda vez que escuto alguém comentar quanto eu prefiro estar sozinho, isso me faz sentir solitário demais.”
Através dos relatos desses diferentes indivíduos percebemos como pode ser variada e, às vezes, contraditória, no universo do autismo, a disposição para embarcar numa relação social. Há os que já sofreram demais e por isso desistem de qualquer outra tentativa. E há os que já passaram por muitas tentativas frustradas de socializar, mas, mesmo assim, não se entregam e continuam tentando estabelecer um contato social com outras pessoas. Além disso, querer ou não querer socializar não é uma disposição permanente e imutável. Vimos em alguns exemplos que a pessoa pode transitar entre diferentes disposições, embora a dificuldade esteja sempre presente.
Fica a pergunta: por que a interação social é tão difícil para as pessoas autistas?
No próximo artigo vamos discutir essa questão. Aguarde e até lá!
[1] Este livro não está traduzido para o português. O título pode ser traduzido como: Um marciano no parquinho.
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